quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Constituição e Soberania: o caso brasileiro

Constituição e Soberania: o caso brasileiro

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Para que possamos compreender, ou seja, apreender em sua totalidade, o sentido de Constituição, é indispensável enxergar o nascimento e a evolução do conceito ao longo da História. É mister saber quando, como, onde e por que as instituições a que ele se refere surgiram e se integraram, evolutivamente, na vida dos povos.

Sem esse indispensável trabalho de reflexão histórica, é impossível compreender a vida política de nosso país, nesses vinte anos de vigência da Constituição Federal de 1988.

I. O que é Constituição

Há dois momentos históricos decisivos a considerar: o do esplendor da filosofia grega, entre os séculos V e III a. C. , e o da deflagração das Revoluções americana e francesa ao final do século XVIII.

O sentido de constituição política até a época moderna

Para os pensadores gregos da época clássica, o vocábulo politéia tinha um duplo significado. 1 Ele designava, de um lado, o que poderíamos denominar cidadania, isto é, a participação ativa de alguém na vida da polis e, de outro lado, a organização geral desta sob o ângulo do poder, isto é, os diferentes órgãos políticos.

Nessa última acepção, os pensadores gregos distinguiam duas realidades inter-relacionadas: o direito ou as leis (nomói) e o poder político assumido pelos governantes (arkhói). Uma sociedade em que os homens no poder não obedeciam à lei, mas seguiam unicamente a sua própria vontade, não era considerada politéia, e sim um regime despótico, pois despótes era o chefe de família que dispunha de poder absoluto sobre parentes e escravos.

As principais dessas leis, as mais veneráveis dentre todas, não eram tidas como produto da vontade humana, mas sim herança sagrada dos antepassados. Tratava-se das agraphói nomói, as leis não escritas, às quais se referiu Antígona, ao justificar a sua desobediência às ordens de Creonte. As normas ditadas pelos costumes tradicionais, afirmou Aristóteles, têm mais autoridade e dizem respeito a matérias mais importantes do que as leis escritas. 2 A legitimidade destas últimas, aliás, consistia justamente em sua conformidade com as outras, das quais eram simples especificações.

De qualquer modo, cada pólis tinha uma singularidade de território e de história; ou seja, de valores, costumes e tradições, os quais compunham um todo único e insubstituível. Foi nesse sentido que Isócrates definiu a politéia como a alma da pólis,3 ou seja, o que ela tem de mais íntimo e original.

Montesquieu retomou a mesma idéia, ao falar de espírito das leis. Logo no capítulo 3 do livro I de sua obra máxima, ele esclarece ao leitor que “as leis devem ser relativas ao físico do país; ao clima glacial, tórrido ou temperado; à qualidade do território, à sua situação, ao seu tamanho; ao gênero de vida dos povos, lavradores, caçadores ou pastores; elas devem se relacionar ao grau de liberdade que a constituição pode admitir; à religião dos habitantes, às suas inclinações, às suas riquezas, ao seu número, ao seu tipo de comércio, aos seus costumes, às suas maneiras de vida. Por fim, as leis se relacionam entre si; elas se vinculam à sua origem, ao objetivo do legislador, à ordem das coisas a respeito das quais elas foram estabelecidas. É em função de tudo isso que elas devem ser consideradas”. E conclui: “É o que pretendo fazer nesta obra. Examinarei todas essas relações: elas formam, todas juntas, o que chamo de o espírito das leis”.

Quanto a Rousseau, a sua concepção nesse particular harmoniza-se com a do mundo grego clássico. Embora aceite o postulado de um pacto fundador da sociedade política, tal como Hobbes, Locke e Montesquieu, o pensador genebrino empresta-lhe um sentido original e altamente simbólico: é uma espécie de batismo cívico, cujo efeito consiste em provocar a ressurreição do homem bom, do homem original do estado da natureza, pervertido pela sociedade moderna.

Não se trata, portanto, de criar uma sociedade nova, oposta às boas tradições, mas de recuperá-las. Nesse sentido, tal como os filósofos gregos, Rousseau sustenta que a mais importante de todas as leis é o conjunto dos usos e costumes. Trata-se de uma lei “que não se grava nem em mármore nem em bronze, mas nos corações dos cidadãos; a que faz a verdadeira constituição do Estado; que toma todos os dias novas formas; que, quando as demais leis envelhecem ou se apagam, as reanima ou as supre, conserva um povo no espírito de sua instituição e substitui, insensivelmente, a força do hábito à força da autoridade”. 4

Em suma, a noção de constituição política, desde a Grécia clássica até meados do século XVIII, apresentava três características bem marcadas: 1) seguia as tradições e os grandes valores éticos dos antepassados; 2) exprimia-se, por conseguinte, mais sob a forma de normas costumeiras do que de leis escritas; 3) ajustava-se como uma luva às especificidades físicas e culturais da sociedade assim organizada; isto é, não podia, de forma alguma, ser transplantada para outro meio social.

Modernamente, essa organização tradicional dos poderes políticos subsiste em um reduzido número de países, notadamente no Reino Unido. Bolingbroke, contemporâneo de Montesquieu, definiu a Constituição britânica como “o conglomerado de leis, instituições e costumes, que decorrem de certos princípios imutáveis da razão e tendem a certos elementos imutáveis do bem público, compondo o essencial de um sistema, segundo o qual convencionou-se que a comunidade deve ser governada”. 5

Foi contra essa concepção tradicional que se forjou, no ambiente revolucionário norte-americano e francês de fins do século XVIII, o conceito moderno de Constituição.

O sentido de Constituição nos tempos modernos

Desde a “crise da consciência européia”, na passagem do século XVII ao século XVIII,6 a cultura ocidental voltou as costas ao passado e passou a sustentar o dever geral de se reconstruir a vida social sobre novas bases, rumo a um futuro de progresso material e felicidade.

Essa confiança no porvir alcançou os Estados Unidos na segunda metade do “século das luzes” e preparou o caminho para a independência das 13 colônias britânicas. John Adams, por exemplo, um dos Founding Fathers da nação norte-americana, tinha plena convicção de que o mundo se encontrava no limiar de uma idade de ouro, e que, portanto, abria-se a possibilidade de se construir uma nova sociedade política de alto a baixo. A esse ato solene de fundação, deu ele o nome de Constitution (com maiúscula). 7

O termo não agradou a Thomas Jefferson, que seguia nesse particular a tradição jurídica britânica. A respeito do ato normativo, que os representantes do povo de Virgínia denominaram Constitution, observou ele: “In Jurisprudence, whenever it is applied to any act of the legislature, it invariably means a statute, law, or ordinance, which is the present case. ” Por conseguinte, concluiu, os membros do poder legislativo de Virgínia, ao invés de dizerem “We, the ordinary legislature, establish a constitution”, deveriam ter dito “We, the ordinary legislature, establish an act above the power of ordinary legislature”; o que bem mostraria a incongruência do procedimento. 8

Na verdade, a Common Law, nesta como em muitas outras matérias, restaurou as instituições e a própria terminologia do direito romano. Ulpiano, em conhecida passagem do Digesto (I, 4, 1), reconhece o que chamaríamos hoje a soberania do imperador, ao afirmar sem rebuços que “quod principi placet, legis habet vigorem” (o que apraz ao prínicipe tem vigor de lei). Em conseqüência, prossegue, tudo o que o príncipe estatui por escrito, oralmente como decreto seu, ou por meio de edito “legem esse constat”. E conclui: “elas são o que vulgarmente denominamos constituições” (haec sunt quas vulgo constitutiones appelamus).

De qualquer maneira, ao lembrar que um órgão legislador ordinário só tem competência para editar leis ordinárias, Jefferson pôs o dedo no ponto saliente do debate. Se a Constituição é uma Magna Carta fundadora de nova sociedade, ela só pode ser outorgada por aquele que exerce a soberania ou, pelo menos, deveria exercê-la. Sieyès dirá, alguns anos depois, às vésperas da Revolução Francesa, que a legitimidade de uma Constituição está estreitamente ligada à legitimidade daquele que exerce o poder soberano. “Seria ridículo supor”, escreveu ele, “a nação vinculada, ela própria, pelas formalidades ou pela constituição, às quais acham-se sujeitos os seus mandatários. Se lhe fosse necessário esperar, para tornar-se uma nação, uma maneira de ser positiva, ela jamais teria existido”. 9

Na França, aliás, os revolucionários estavam tão convencidos de que acabavam de inaugurar uma nova era histórica, que não hesitaram em abolir o calendário cristão e substituí-lo por um novo, cujo Ano I iniciou-se em 22 de setembro de 1792, dia seguinte à data da instalação dos trabalhos da Convenção, a Assembléia Constituinte que abriu o regime republicano.

Antes disso, em agosto de 1789, quando a Assembléia Nacional reuniu-se para redigir uma declaração de direitos como espécie de Novo Decálogo, um deputado do Tiers Etat, Duquesnoy, frisou o seu caráter universal:

“Uma declaração deve ser de todos os tempos e de todos os povos; as circunstâncias mudam, mas ela deve ser invariável em meio às revoluções. É preciso distinguir as leis e os direitos: as leis são análogas aos costumes, sofrem o influxo do caráter nacional; os direitos são sempre os mesmos. ”

A reação dos tradicionalistas

Tais idéias suscitaram, desde logo, a reação irada dos tradicionalistas, de um e outro lado do Canal da Mancha.

Edmund Burke não poupou invectivas à Assembléia Nacional Francesa em sua louca pretensão de criar uma nova ordem jurídica, cortando todas as amarras com o passado. “Essa Assembléia, a partir do momento em que destruiu as ordens (les Etats Généraux du Royaume), já não conta com lei fundamental, convenção estrita, ou costume reconhecido algum para restringi-la. Em vez de se reconhecerem obrigados a respeitar uma constituição fixa, eles (os membros da Assembléia) têm o poder de fazer uma constituição conforme aos seus desígnios. Nada, no céu ou na terra, é capaz de controlá-los”. 10

Joseph de Maistre, no mesmo diapasão, repudiou acremente o atentado contra a natureza e o poder divino, perpetrado pelos revolucionários, ao votarem uma Constituição para a França. “Constituição alguma”, escreveu ele, “resulta de um ato de vontade (une délibération); os direitos dos povos não são jamais escritos, ou pelo menos os atos constitutivos ou as leis fundamentais escritas não passam de títulos declaratórios de direitos anteriores, dos quais não se pode dizer outra coisa, senão que eles existem porque existem”.

Profligando o caráter abstrato e universal das declarações de direitos nas Constituições francesas, ironizou: “A Constituição de 1795, tal como as suas irmãs mais velhas, é feita para o homem. Ora, não há homem no mundo. Em minha vida, vi franceses, italianos, russos etc. Sei até, graças a Montesquieu, que se pode ser persa11: mas quanto ao homem, declaro que nunca o encontrei em toda a minha vida; se ele existe, eu o ignoro completamente” (“s’il existe, c’est bien à mon insu”).

Da mesma forma, “uma constituição que é feita para todas as nações, não é feita para nenhuma delas: é uma abstração, uma obra escolástica feita para exercer o espírito segundo uma hipótese ideal, e que é preciso dirigir ao homem, nos espaços imaginários onde ele habita. ”

E retomando o raciocínio de Montesquieu, conclui, peremptoriamente:

“O que é uma constituição? Não é por acaso a solução do problema seguinte?

Considerando-se a população, os costumes, a religião, a situação geográfica, as relações políticas, as riquezas, as boas e as más qualidades de uma determinada nação, encontrar as leis que lhe convêm. ”12

Na verdade, o repúdio à idéia de refundação da sociedade política por um ato criador solene, denominado “Constituição”, continuou a alimentar uma boa parte do pensamento europeu, e encontrou, no início do século XIX, um defensor de peso: Hegel.

Para o grande filósofo, assim como o Estado é um organismo vivo, da mesma forma a sua Constituição não pode ser tida como algo artificial e, portanto, suscetível de ser feita e desfeita à vontade. “A questão: a quem, a que autoridade – e organizada de que modo – compete fazer uma Constituição é a mesma que esta: quem tem de fazer o Espírito de um povo. Se se separa a representação de uma Constituição da do Espírito, como se bem existisse ou tivesse existido sem possuir uma Constituição à sua medida, tal opinião prova somente a superficialidade do pensamento sobre a coerência do Espírito, de sua consciência a respeito de si e de sua efetividade. O que assim se chama fazer uma Constituição, em razão dessa inseparabilidade, nunca se encontrou na história, tampouco como fazer um Código de leis: uma Constituição só se desenvolveu a partir do Espírito, em identidade com o seu próprio desenvolvimento; e, ao mesmo tempo com ele, percorreu os graus necessários e as transformações através do Conceito. 13 É pelo Espírito imanente e pela história – é na verdade pela história e somente pela sua história – que as Constituições são feitas e foram feitas”. 14

A síntese necessária

Após séculos de interpretação unilateral do fenômeno societário e da cultura como criação humana, o pensamento contemporâneo parece encaminhar-se hoje, convergentemente, para uma visão integradora das sociedades e das civilizações.

Prevaleceu, até o século XX, mesmo no campo das ciências sociais, o método cartesiano de decomposição do objeto do pensamento, ou seja, a divisão do todo em partes separadas, com o exame racional de cada uma delas de per si.

O método assim proposto adapta-se perfeitamente à análise de idéias abstratas, ou de realidades estáticas e inanimadas. Mas ele é inadequado à compreensão, isto é, ao ato de apreender conjuntamente (cum prehendere) a vida, em todas as suas modalidades. Os seres vivos e, em especial, os seres humanos, que são o que de mais complexo existe no universo, só podem ser compreendidos, na totalidade integradora do conjunto dos elementos que os compõem, mediante a consideração conjunta de sua dinâmica interna e sua funcionalidade externa. Em outras palavras, para que possamos entender qualquer elemento da biosfera, e em especial o homem e suas criações culturais, é indispensável enxergá-lo holisticamente (holos, na língua grega, é um advérbio que significa em sua totalidade); portanto, não apenas sob o aspecto estrutural, mas também funcional. Em vez de decompor as partes do todo e analisá-las separadamente, é preciso considerar a totalidade em sua organização completa, bem como entender o seu relacionamento com o mundo exterior; vale dizer, desvendar o seu organograma e o seu programa.

Uma vasta corrente de pensamento contemporânea propôs denominar sistema todo objeto que só pode ser apreendido pelo pensamento, conjuntamente, em sua estrutura holística e em sua realidade funcional. Num sistema, o todo é, em certo sentido, superior à soma de suas partes componentes, pois estas mantêm sempre, entre si, um relacionamento dinâmico, de tal sorte que, modificada qualquer das partes, modifica-se inevitavelmente o todo. Mas essa totalidade, assim organicamente estruturada, só cobra sentido quando vista, ela também, como parte de um todo maior, estruturado de modo orgânico, e dentro do qual ela exerce uma função determinada, e assim sucessivamente.

A teoria sistêmica foi concebida originalmente na biologia;15 passou em seguida, com a cibernética (neologismo cunhado por Norbert Wiener do étimo grego kybernetes, piloto),16 para o campo dos organismos animais e dos mecanismos auto-regulados,17 e, finalmente, para o ser humano, em toda a sua complexidade, individual e social.

Infelizmente, o método sistêmico de compreensão do Direito ainda não foi acolhido pela doutrina.

Essa carência teórica é bem sensível no campo do direito público, notadamente no ramo constitucional. O documento normativo denominado Constituição é interpretado como uma peça bastante em si mesma, sem ligação com a realidade política, e capaz de criar, por efeito de sua própria força imanente, um Estado de Direito perfeito e acabado.

Poucos dão-se conta de que, mesmo no país de origem das Constituições modernas – os Estados Unidos –, a Constituição é aquilo que a Corte Suprema reconhece como tal; e ninguém pode ignorar que a orientação política dos magistrados que a compõem varia conforme a sucessão dos momentos históricos, em função da opinião pública dominante. Assim foi em relação ao problema da discriminação contra os negros, antes e depois da guerra civil; em relação ao perigo comunista, nos anos que imediatamente se seguiram à Segunda Guerra Mundial (o mac-carthysmo); assim foi em matéria de liberdades públicas, em seguida aos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001.

Logo após a Revolução Francesa, Joseph de Maistre dizia que a França achava-se dividida em dois países, o legal e o real, sem comunicação um com o outro.

Sem aceitar o evidente exagero dessa análise dicotômica, podemos e devemos reconhecer que em vários países convivem, numa relação dialética de influência recíproca, uma Constituição formal e uma Constituição informal. Nenhuma consegue anular a outra, mas há sempre uma delas que predomina. 18 Os juristas só enxergam a Constituição formal, enquanto os cientistas políticos têm olhos, tão-só, para a Constituição informal.

A Constituição formal volta-se para o futuro e pretende, em geral, inaugurar uma nova ordem política. Ao lado dela, porém, há sempre uma organização efetiva de poderes não oficiais, de costumes e tradições,19 os quais evoluem sob o influxo da mentalidade social, isto é, do conjunto de valores éticos, das opiniões e da visão de mundo prevalecentes.

Essa organização política não oficial representa, comumente, um freio à aplicação completa e efetiva da Constituição formal, 20 mas tende a ser modificada por esta, se houver estabilidade política durante um tempo razoavelmente longo.

Pode também suceder – e é o caso do Reino Unido – que um país apresente, pelo menos em aparência, tão-só uma espécie de Constituição, formada de velhos costumes políticos, consagrados por longeva tradição. Mas essa aparência é enganosa. Há sempre um movimento de transformação voltado para o futuro e tendente a alterar esta ou aquela tradição. No Reino Unido, aliás, já é bem clara atualmente uma duplicidade constitucional, com a progressiva incorporação, no ordenamento jurídico do país, das normas emanadas das instâncias superiores da União Européia, todas elas na linha da Civil Law. .

Na verdade, as chances de longeva vigência de uma Constituição formal dependem de um elevado grau de correspondência do seu texto com a organização real da sociedade, os valores e as visões do mundo que nela estão em vigor. 21 A Constituição norte-americana pôde, assim, vigorar durante mais de dois séculos, porque correspondeu perfeitamente, quando de sua promulgação, ao caráter burguês predominante no meio social das treze colônias britânicas em fins do século XVIII. Mas o seu ponto principal de conflito com a organização real de poderes na sociedade – a afirmação das liberdades individuais contra a manutenção do instituto da escravidão – acabou por provocar a mais sangrenta guerra civil do século XIX, e ameaçou seriamente cindir o país em dois. Em sentido contrário, a Revolução Francesa não logrou transformar rapidamente o caráter estamental da sociedade e o seu apego atávico aos costumes feudais. Em pouco mais de meio século, de 1791 a 1848, o país teve nove Constituições, e oscilou várias vezes entre a monarquia e a república.

II. Constituição e Soberania no Brasil

A permanente duplicidade constitucional

O problema central da organização do Estado brasileiro, segundo me parece, é que a síntese entre a Constituição formal e a informal jamais chegou a realizar-se de modo harmônico. Desde sempre, as Cartas Políticas têm desempenhado, entre nós, a função de encobrir, solenemente, a realidade efetiva do poder social.

O que agrava ainda mais esse quadro anômalo é que a duplicidade de ordenamentos constitucionais é raramente sentida e menos ainda denunciada.

Dois fatores explicam, a meu ver, esse resultado.

O primeiro deles é o traço marcadamente bovarista do caráter nacional. À semelhança da trágica personagem de Flaubert, procuramos fugir da realidade canhestra e atrasada em que estamos metidos, e que nos envergonha, de modo a sublimar na imaginação, para o país todo e cada um de nós em particular, uma identidade e condições ideais de vida, que fingimos possuir, mas que nos são de fato completamente estranhas. Ao longo de nossa história política, raríssimos têm sido os homens públicos, os movimentos ou as agremiações partidárias que ousam dizer-se de direita. Para nós, tal equivale a apresentar-se de modo abrutado e insolente numa recepção de alto nível. Se a moda em países civilizados é ser liberal, progressista ou democrata, não podemos deixar de copiar esse modelo.

O outro fator explicativo dessa situação quase esquizofrênica de nossa vida política é a tendência incoercível à ambigüidade. As palavras têm sempre, entre nós, um duplo sentido. Na linguagem política, todos sabem que os vocábulos empregados não devem ser interpretados em seu significado aparente e dicionarizado, mas indicam, costumeiramente, uma acepção encoberta. Qualquer pessoa minimamente arguta percebe, de imediato, quando está diante de senhas de linguagem. “Faremos o possível para evitar a crise” quer dizer “já estamos nela afundados”. “O partido decidiu emprestar sua colaboração ao governo empenhado no desenvolvimento nacional” indica que ambas as partes concluíram o contrato sinalagmático: o partido recebeu vantagens apreciáveis do chefe do Poder Executivo, patrimoniais ou funcionais, e deu em troca a garantia de sempre votar com o governo.

Eis porque logramos a proeza de haver construído, desde a Independência, debaixo dos imprescindíveis ornamentos constitucionais, um liberalismo de senzala, uma república privatista e uma democracia sem povo.

Soberania de quem?

Aristóteles afirmou que as diferentes espécies de politéia distinguem-se, umas das outras, pelo titular do poder supremo (kyrion). Assim, uma polis é considerada democrática, quando o poder supremo pertence ao povo; oligárquica, quando, ao invés do demos, ou seja, da totalidade dos cidadãos, são apenas uns poucos (oligói) que comandam em última instância. 22

Se nos servirmos desse critério para caracterizar a Constituição Federal de 1988, teremos muita dificuldade de chegar a uma conclusão que Espelhe a realidade. Se não, vejamos.

Repetimos, sem cessar, a declaração de princípio de que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”, nos termos da Constituição (art. 1º, parágrafo único).

Tomemos, porém, a primeira forma e mais usual de exercício da soberania popular nos tempos modernos: a representativa. O representante, mesmo em direito público, age por conta do representado; vale dizer, os poderes que o representante exerce não lhe pertencem, mas lhe foram delegados pelo povo, a quem ele deve prestar contas do exercício do mandato.

Pergunta-se: A aprovação da Constituição, ou de suas alterações, faz parte ou não do poder soberano?

É óbvio que sim, pois alguém que não tivesse competência para aprovar ou modificar o ordenamento supremo do Estado não poderia se apresentar como soberano. Ele teria que se curvar, necessariamente, à supremacia de outrem.

Os autores modernos e contemporâneos, aqui e alhures, salvo raríssimas exceções, passam como gatos sobre brasas ao tratar do poder constituinte. A explicação mais cômoda e generalizada é a de que o órgão legislativo ordinário exerce um poder constituinte derivado, ficando o poder constituinte original sempre com o povo.

Sucede, porém, que se o representante não recebe poderes especiais do soberano, ele não pode tocar na Constituição. “Em qualquer de suas partes”, acentuou Sieyès, “a constituição não é obra do poder constituído, mas do poder constituinte. Nenhuma espécie de poder delegado pode mudar as condições de sua delegação”. 23

Ora, nenhuma das nossas Constituições foi referendada pelo povo, como condição para entrar em vigor legitimamente. Mais: em todas as Constituições republicanas, determinou-se que as emendas seriam aprovadas tão somente pelo Congresso Nacional – com um procedimento mais exigente, é verdade, que o da aprovação de projetos de lei, mas nunca com referendo popular. A atual Constituição já foi emendada sessenta e duas vezes em vinte anos de vigência; o que perfaz a apreciável média de mais de três emendas por ano. Em nenhuma dessas ocasiões, o povo brasileiro foi convocado para dizer que se aceitava ou não a alteração constitucional assim produzida.

Dir-se-á que, no caso das emendas, o povo delega esse poder, em cada legislatura, aos seus representantes eleitos. Mas afinal, cuidando-se do exercício de uma prerrogativa soberana, é porventura admissível uma implícita delegação de poderes? Alguém minimamente sensato afirmaria que o povo brasileiro tem plena consciência de que, a cada eleição, está outorgando plenos poderes ao Congresso Nacional para emendar a Constituição? Pois se o povo não tem nem mesmo o poder de iniciativa nessa matéria!

É importante lembrar que a Constituição de 24 de março de 1824, embora outorgada pelo Imperador depois de dissolvida a Assembléia Nacional, tinha, a propósito de alterações em seu texto, um procedimento coerente com o sistema representativo. Em seus artigos 174 e seguintes, dispunha aquela Carta que uma proposta de se alterar este ou aquele dispositivo da Constituição deveria ser preliminarmente aprovada pela Câmara dos Deputados. Com base nessa prévia e explícita aprovação, expedir-se-ia uma lei, “na qual se ordenará aos Eleitores dos Deputados para a seguinte Legislatura, que nas Procurações lhes confiram especial faculdade para a pretendida alteração, ou reforma”.

Isto, quanto ao exercício da soberania por meio de representantes eleitos.

Se examinarmos agora a modalidade direta de o povo exercer a sua soberania, chegaremos ao mesmo resultado negativo.

O art. 14 da Constituição Federal enumera como manifestações da soberania popular, além do sufrágio, o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular legislativa.

Pois bem, em matéria de plebiscitos e referendos, a Constituição, em seu art. 49, inciso XV, determina, contraditoriamente, que essas manifestações da soberania popular somente terão lugar, mediante autorização ou convocação do Congresso Nacional; e este último entende que tal poder de convocar ou autorizar é uma prerrogativa indeclinável dele próprio. Ou seja, o mandante, tido como soberano, só pode manifestar sua vontade juridicamente eficaz, quando tem permissão do mandatário. Se tal autorização não tiver sido dada, haverá o povo de se contentar com abaixo-assinados, desfiles ou manifestações de protesto em praça pública, desde que, bem entendido, tais expressões da liberdade democrática sejam toleradas pelas forças policiais.

Infelizmente, as interpretações paralisantes do princípio constitucional da soberania popular não se limitam a essa matéria genérica, mas estendem-se também a casos específicos, como o da realização de plebiscitos e referendos em Estados e Municípios.

O art. 14 da Constituição Federal, como lembrado, declara que plebiscitos e referendos são manifestações da soberania popular. Em 18 de novembro de 1998, foi promulgada a Lei nº 9. 709, que regulamentou esse dispositivo constitucional.

Sucede que, recentemente, o Tribunal Regional Eleitoral do Estado de São Paulo, a propósito da realização de um plebiscito aprovado pela Câmara Municipal de Santo André, declarou que a citada Lei nº 9. 709 não se aplica no âmbito municipal.

Temos, pois, segundo essa interpretação pretoriana, uma das seguintes hipóteses: 1) o princípio fundamental da soberania popular, inscrito na Constituição, carece, em sua aplicação, de regulamentação legislativa; 2) o plebiscito não é uma manifestação da soberania popular; ou 3) os Municípios não são unidades componentes da federação brasileira, devendo-se entender, por conseguinte, que a soberania do povo só existe na esfera federal.

A lição conclusiva é que o regime oligárquico, que sempre vigeu entre nós, modela, desde a Independência, a nossa Constituição informal, e chega por vezes a penetrar, de contrabando, no sistema das próprias Constituições formais de aparência democrática, quebrando-lhes a coerência interna.

III. Propostas para a efetiva instauração de um regime democrático no Brasil

Para que o Estado Democrático de Direito possa enfim existir entre nós, não basta atuar no nível das instituições políticas. É preciso, também, desenvolver um amplo e prolongado trabalho de educação para a cidadania democrática.

Limitemo-nos aqui, no entanto, a discutir unicamente as propostas de reforma institucional.

A idéia central é uma só: tornar o povo brasileiro um soberano efetivo e não meramente simbólico.

Para tanto, parece-me indispensável introduzir os seguintes aperfeiçoamentos em nosso ordenamento constitucional.

A – Revisão geral da Constituição

É urgente criar em nosso sistema constitucional, mediante emenda regularmente votada, o instituto da revisão geral da Constituição, analogamente ao que dispõem a Constituição espanhola (art. 168) e a da Confederação Helvética (artigos 118 e seguintes).

O processo de revisão geral deveria obedecer às seguintes regras:

a) Atribuição do poder de revisão a uma assembléia de representantes do povo, constituída exclusivamente para essa finalidade;

b) A revisão geral da Constituição não poderá enfraquecer nem, com maioria de razão, suprimir direitos, garantias e objetivos fundamentais da Constituição de 1988. Para tanto, os trabalhos de revisão serão acompanhados pelo Procurador-Geral da República, que poderá suscitar diretamente o julgamento do Supremo Tribunal Federal;

c) Lançamento do processo de revisão constitucional por decisão direta do povo, em plebiscito convocado pelo Tribunal Superior Eleitoral;

d) Previsão de um prazo improrrogável de funcionamento da Assembléia Nacional Revisora, cujas decisões serão obrigatoriamente submetidas a referendo popular, no seu conjunto, sem prejuízo da possibilidade de destaque de determinadas matérias;

e) Possibilidade de apresentação de propostas de revisão constitucional, não só diretamente por um grupo de cidadãos, mas também por associações e órgãos de classe de âmbito nacional;

f) Fixação de um interregno não inferior a dez anos para a convocação de novos plebiscitos sobre a revisão constitucional.

B – Emendas constitucionais

a) Criar a iniciativa popular nessa matéria, tal como proposto pelo eminente Professor Paulo Bonavides;

b) Instituir o referendo popular de emendas aprovadas pelo Congresso Nacional.

C – Plebiscitos e referendos

a) Regular essa matéria, tal como previsto nos projetos de lei nº 4. 718/2004 da Câmara dos Deputados e nº 01/2006 do Senado Federal, ambos propostos pela Ordem dos Advogados do Brasil, determinando-se, entre outras medidas, que plebiscitos e referendos só possam ser realizados mediante iniciativa popular ou iniciativa de um terço dos membros de qualquer Casa do Congresso Nacional, excluindo-se expressamente o poder de iniciativa do Presidente da República.

b) Revogar o art. 49, XV da Constituição Federal, determinando-se que plebiscitos e referendos sejam convocados pela Justiça Eleitoral.

D – Recall

Introduzir em nosso sistema constitucional o instituto da revogação popular de mandatos eletivos, tanto em relação a Chefes do Poder Executivo, quanto em relação a parlamentares, em todas as unidades da federação. Já há, nesse sentido, a Proposta de Emenda Constitucional nº 73/2005, em tramitação no Senado Federal, cujo texto foi oferecido aos Senadores pela Ordem dos Advogados do Brasil.

Natal, novembro de 2008.
XX Conferência Nacional dos Advogados

Indicação de Aristeu Bertelli


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