Exagero meu ou aflições verdadeiras, produzidas por uma realidade desconcertante? Ouço que o Brasil tornou-se uma nação soberana, que nunca antes neste país materializaram-se tantas aspirações do seu povo, que as potências estrangeiras dobram-se à grandeza da nacionalidade.
Nos jornais encontro números tão expressivos quanto misteriosos. O PIB brasileiro em 2008 foi de US$ 1,94 trilhão, o nono na escala planetária. O Brasil tornou-se credor do FMI. As exportações brasileiras atingiram, em 2008, o valor de US$ 197,94 bilhões. O índice Bovespa registra em 2009 valorização que supera 50%.
Diante dessas notícias, por que tanto desconsolo da minha parte? Talvez por ser médico e por compreender que a saúde de uma nação tem de ser pautada não apenas pelo seu PIB, mas, principalmente, pelo respeito à condição humana e pela luta sem tréguas contra a desigualdade social.
Como ser feliz se estamos no 70º lugar no Índice de Desenvolvimento Humano, conceito mais justo que incorpora o dogma da existência usufruída com dignidade? Como permanecer calado quando descubro que cerca de 22%, ou 40 milhões de brasileiros, vivem abaixo da linha de pobreza, incapazes de sequer obter alimentos para subsistir?
Como ficar indiferente quando leio que mais de 25% dos membros da nação são analfabetos ou não conseguem compreender o que estão lendo? Desconforto que fica quase insuportável quando descubro que Cuba, Venezuela, Chile, Equador e Bolívia declararam-se recentemente territórios livres do analfabetismo. Como não ficar indignado quando estatísticas da ONU mostram que, para cada 1.000 crianças pobres que nascem no Brasil, 83 morrem antes de completar seu primeiro ano de vida, um número que contrasta com 5 mortes no Canadá, 8 no Chile e 15 na Argentina?
Mesmo ciente das minhas limitações, desconfio que a desgraça que nos assola resulte de uma coreografia insana que mistura uma histórica desigualdade social, governos descomprometidos com a condição humana e ações nefastas de um sem-número de oportunistas que tomaram de assalto, espraiaram-se e passaram a consumir o Estado.
Dados que ilustram a injustiça são abundantes. No Brasil, ainda de acordo com a ONU, 1% dos cidadãos mais ricos têm a mesma renda que a soma dos 50% mais pobres. Estes que perambulam pelas ruas da nação, oprimidos pela fome, pelas pragas e pela violência, incapazes de esboçar reação e controlar seus destinos. Subjugados por um sistema dirigente insensível, que foi capaz de pagar, em 2008, R$ 120 bilhões de juros da dívida nacional e destinar apenas R$ 48 bilhões e R$ 29 bilhões, respectivamente, para financiar toda a saúde e toda a educação superior do povo brasileiro. Governantes incapazes de compreender que sem saúde e sem educação não existem seres livres.
Frequentemente nosso presidente manifesta sua revolta diante da tragédia social que nos assola. Talvez seja um começo. Mas é pouco, sr. presidente. Pouco para alguém que, em período recente menos glorioso da história, conviveu com a injustiça e com autoridades que não eram coisa boa. Agora que o senhor é autoridade e a sociedade brasileira continua açodada por outras formas de truculência, imagine se a tua complacência for mal interpretada, confundida com aquiescência.
Como lembrava o arcebispo Desmond Tutu, incansável na luta pelos direitos civis: "Se ficarmos neutros numa situação de injustiça, teremos escolhido o lado do opressor". Presidente, principalmente você, que tem história para ser o exemplo, pode atender ao grito ensurdecedor de tantos filhos da nação.
Assumindo o combate sem limites ao grupo de predadores assentados no poder. Exigindo que a Justiça faça das leis instrumentos verdadeiros de defesa dos direitos, e não objetos de proteção aos ímprobos e poderosos.
E, tomado por compaixão, adotando ações genuínas para reduzir os efeitos da desigualdade e para resgatar a condição humana desses brasileiros. Só assim, perfilado no dia da pátria, você conseguirá, marejado, declamar com a multidão: "Dos filhos deste solo és mãe gentil, pátria amada, Brasil".
domingo, 6 de setembro de 2009
Pátria amada, mãe gentil?
Frequentemente nosso presidente manifesta sua revolta diante da tragédia social que nos assola. Pode ser um começo. Mas é pouco
A MINHA infância, povoada por soldadinhos de chumbo e outras fantasias, continha momentos inebriantes. Era quando os soldados, evoluindo nas paradas do Sete de Setembro, desviavam o seu olhar e miravam, respeitosamente, os senhores da nação. Hoje não quero mais assistir aos desfiles. Com medo de não encontrar os mesmos olhares, de não vislumbrar a mesma nação.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário