sábado, 28 de novembro de 2009

A libertação do juiz e a lei


A libertação do juiz e a lei

A presunção de inocência está na base da punição, embora o prazo razoável se meça em anos e mais anos


Os mecanismos operacionais de julgamento oficial não funcionam do mesmo jeito para os afortunados e para os outros



O MINISTRO Joaquim Barbosa concedeu habeas corpus ao ex-juiz Rocha Mattos, determinando sua libertação, acompanhando a jurisprudência do STF. Os termos pelos quais a Constituição preserva a presunção de inocência existem em incisos do artigo 5º, iniciados pelas palavras "nenhum" ou "ninguém". A regra é firme e clara: nenhum fato e nenhuma pessoa afrontarão o texto constitucional, em presença das circunstâncias nele descritas. Está no inciso 57 do artigo 5º que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória". A culpa definitiva cabe apenas se não couber mais qualquer recurso contra a condenação.

Essa garantia é imprescindível. Fundamental, até pelo fato de que, se não fosse assim, muitos cumpririam penas criminais para, só depois, ser reconhecida sua inocência. Haveria imensos sacrifícios pessoais e familiares, impossíveis de serem compensados ou reparados, sobretudo nas classes mais pobres. O princípio essencial da inocência presumida vale para todas as pessoas acusadas de terem cometido crimes, até "o trânsito em julgado da sentença condenatória", ocorrida em prazo razoável.


Mas, como definir objetivamente o prazo razoável? -perguntará o leitor já irritado com desculpa que não vale, na prática diária, para pessoas comuns. Prazo razoável é o previsto no mesmo artigo 5º, no inciso 78, introduzido em dezembro de 2004. O inciso mencionado diz expressamente o seguinte: "a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade da tramitação".


Os estudiosos da linguagem jurídica dizem que as leis, em certas circunstâncias, podem ter normas ocas. Parecem dizer alguma coisa, mas não dizem, porque são enunciadas com termos que nada representam. Só alguém muito crédulo admitirá que há verdade objetiva, concreta, na regra constitucional do inciso 78, como se pode verificar em face de muitos casos surgidos recentemente no noticiário. Para alguém que seja um jornalista prestigioso e matar pelas costas a namorada e, na dúvida, vendo-a caída, der-lhe um tiro na cabeça, é muito provável que a duração razoável do processo se transformará numa teia de Penélope, que nunca terminará. Idem se o acusado de mandar matar três homens for o dono de uma importante empresa de transporte aéreo. A presunção de inocência está na base da punição, até que extinta, embora se saiba de casos em que prazo razoável se mede em anos e mais anos, cujo termo final não chega enquanto os interessados viverem.


Por que isso ocorre? Porque os mecanismos operacionais de julgamento oficial não funcionam do mesmo jeito para os afortunados e para os outros. Não funcionam do mesmo jeito para pessoas físicas ou jurídicas de direito privado e para o poder público. Estes, com ofensa da moralidade constitucional, contrária ao calote. Aquelas, obrigadas ao cumprimento. Num Estado em que os governantes retardam o pagamento das suas dívidas até o infinito, em que os criminosos recebem tratamentos diversos, instala-se a dúvida sobre o que é justo. Mesmo assim, a presunção de inocência é valor sobre o qual se assenta todo o direito penal. É o que resulta de decisão de Joaquim Barbosa.



De Walter Ceneviva na Folha de São Paulo de 28/11/09

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